domingo, 11 de abril de 2021

Como Se Não Houvesse Amanhã

Gonçalo Branco - 12º D

Sobre as Ações de Voluntariado de Limpeza de Lixo na Serra da Lousã

Sacos amontoados, beatas de cigarro, marés de garrafas que vieram desembocar à serrania. Cada um é como cada qual. E todos com os seus gostos, feitios, cores e até mesmo idades. Por fora, resistem e insistem, sobrevivem a mais uma tempestade, mais uma avalanche; e aqui e ali brotam, reproduzem-se e multiplicam-se como as colónias exóticas de acácias e áqueas, aninhando-se indiscretamente no seu leito e surpreendendo quem se passeie pelas redondezas ou, sobranceiramente, desvie o olhar das Ermidas de Nossa Senhora da Piedade para o enorme fundão junto à estrada para o Castelo. Por dentro, nenhuma mensagem à vista senão o amargor da inconsciência e da irresponsabilidade de quem, por forçosa inércia, achou por bem deixar o seu testemunho na natureza, esperando que mais tarde, muito mais tarde, num futuro tão incerto como o próprio futuro, acabasse por se extinguir miraculosamente. Ou então, por ir parar às mãos de voluntários ambientalistas, essa espécie rara, mas observadora e curiosa, que se dedica comummente à preservação ativa dos ecossistemas.

Voluntários esses que, com o auxílio de apenas um saco e de um par de luvas, e sob a chuva inclemente, foram, por meio-dia, que bem podia ter valido uma eternidade, não somente voluntários, mas também arqueólogos, caçadores, montanhistas, detetives…; e que arriscaram mais do que a sua vontade, assumiram um compromisso e alargaram o presente, limpando erros do passado e evitando novos desastres futuros. Na verdade, o amanhã pode ser reduzido a uma inofensiva garrafa, desde que a saibamos usar, deixando nela, por fim, a mensagem correta para descodificar a esperança. Foram estas pequenas garrafas, metaforicamente ou não, que nos guiaram a bom porto, mesmo por caminhos desmedidos e sob o denso nevoeiro.

Outros tesouros foram depois desabrochando e ganhando vida nas nossas memórias, após largos e impacientes anos de esquecimento. Muitos lembrar-se-ão dos míticos refrigerantes Serranita, da Laranjina C, da Superfresco, da Sagres Europa. Os mesmos que provavelmente também se hão-de recordar das modas Maconde, das garrafas de Vigor, das embalagens de Nucrema e de uma panóplia de conserveiras perdidas no tempo. No fundo, um regresso a uma outra era, para onde olhamos com uma certa nostalgia e também desolação.

O antiquário estava à vista de todos, e ia muito mais além das bebidas, vestuário e alimentação. Azulejos de todos os padrões possíveis e imaginários, sanitas e porcelanas, louças, vaseiras, mármores, sacos de serapilheira, destroços de um automóvel, um fogão, sapatos a perder de vista e ferragens eram, segundo muitos, 'coisa pouca' para tanto lixo acumulado num só lugar. Até porque 'quem não sabe é como quem não vê' e quem não vê tende a acreditar que sabe. Saberíamos nós, que 'debaixo da capa' estaria tamanho segredo, fazendo confundir uma lápide funerária com uma banca de cozinha? Um segredo que pode ser caricato, mas que na realidade esperou quase 40 anos para ser revelado. 40 anos que fariam sentido ontem, anteontem ou porque não há 40 anos, se se tivessem tomado medidas consistentes. Sacos amontoados, beatas de cigarro, pilhas de garrafas, uma lápide, entre tantas outras quinquilharias, mas que afinal têm também a sua história.

A história de uma natureza com identidade, abandonada, perdida, da qual todos têm memória, apesar de poucos se atreverem a lutar por ela e a defende-la com determinação; e que, nos dias que passam, é também vista como peça de museu e de exposição turística. Talvez se hoje fosse amanhã, pensaríamos 40 vezes antes de atirarmos a primeira pedra. Ou a última garrafa.

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