sexta-feira, 5 de abril de 2024

25 DE ABRIL – 50 ANOS – 50 POEMAS

Placard Escola Secundária da Lousã; Foto: Luís Moura

Placard Escola Secundária da Lousã; Foto: Luís Moura

O 30º poema, Crónica de Abril (Segundo Fernão Lopes), de Manuel Alegre, apresenta-nos um relato em que se cruzam e fundem dois tempos e duas revoluções: a da sublevação do Povo de Lisboa em defesa do Mestre de Avis, na Crise de 1383-1385, narrada por Fernão Lopes, na Crónica de D. João I, e a Revolução de 25 de Abril de 1974, comandada pelos Capitães de Abril e em que o Povo também saiu à rua e aclamou e apoiou os militares e a revolução em curso. Duas épocas muito afastadas no tempo, em circunstâncias diferentes, mas irmanadas na luta pela Liberdade e em que o Povo da Cidade de Lisboa saiu à rua e se levantou em defesa de um Portugal livre.

Luís Moura, docente de Português

30. Crónica de Abril (Segundo Fernão Lopes)

A rosa a espada o Tempo a lua cheia
entre Abril e Abril memória e ato
este oculto invisível coração.
E a trote dos cavalos os blindados
(quem me acorda no meio do meu sono?)
«Lisboa está tomada». A rosa e a espada.
Subitamente às três da madrugada.

Andando o Povo levantado andando
Álvaro Pais de rua em rua: «Acudam
ao Mestre cá ele é filho d’El-rei. D.
Pedro». Entre Abril e Abril. Memória e ato.
Verás florir as armas: lua cheia.

Saiu de Santarém o Capitão
já o Mestre matou o Conde Andeiro
e Álvaro Pais nas ruas cavalgando:
Matam o Mestre nos Paços da Rainha.

E o microfone às três e tal. E as gentes
que isto ouviam saíam pelas ruas
a ver que coisa era. E começando
a falar uns com outros começavam
a tomar armas. «Aqui Posto de
Comando». E soavam vozes de arruído
pela cidade. E assim como viúva
que rei não tinha se moveram todos
com mão armada. E Álvaro Pais gritando:
«Acudamos ao Mestre meus amigos
Acudamos que o matam sem porquê.»

E o rouxinol cantou. Ouvi dizer
que na torre soaram badaladas.
O doce cheiro a terra. O respirar
da amada. «E sobre cada povo (Nietzche)
está suspensa uma tábua de valores».
Verás florir o Tempo. A rosa e a espada.
Nel mezzo del camin di nostra vita.
Subitamente às três da madrugada.

E começava a gente de juntar-se
e tanta que era estranha de se ver.
Não cabiam nas ruas principais
cada um desejando ser primeiro
e todos feitos d’um só coração.

Não sei se a História tem um fio se
não tem. Mas já de Santarém partiu
o Capitão. De negro vem vestido
em cima da Chaimite. Ouves? É o trote
das lagartas. Cavalos e cavalos.

O exército da noite e seus blindados.
Ó com quanto cuidado e diligência
escrever verdade sem outra mistura.

Andando o Povo levantado andando
um Major aos seus homens perguntando:
«Adere ou não adere? É só. Mais nada.»
E o segundo-sargento perfilando-se:
«Há vinte anos que espero este momento.»

Verás florir o Tempo. E as armas
desabrochadas: às três da madrugada.

Soem às vezes altos feitos ter
começo por pessoas cujo azo
nenhum povo podia imaginar.
E pois assim aveio que em Lisboa
um cidadão chamado Álvaro Pais:

«Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?»
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
Mas isto já ninguém o queria crer.

Continuidade. Descontinuidade.
E o que é rutura? E a História? Um caos de acasos.
Kairos (dizem os gregos). Conjunturas
favoráveis.
        Verás florir as armas.

E já o Capitão entra na Praça
andando o Povo levantado andando
apoiando a coluna quando avança
para cercar o Carmo às doze e trinta.

Traziam uns carqueja e outros lenha
alguns pediam escadas e bradavam
que viesse lume para porem fogo
e queimarem o traidor e a aleivosa

E em tudo isto era o tumulto assim
tão grande que uns aos outros não se ouviam
e não determinavam coisa alguma.

E o trote dos cavalos os blindados.
(Quem te acorda no meio do teu sono?)
Verás florir o Tempo: rosa e espada.
Subitamente às três da madrugada.

De cortinas corridas está o Carmo.
Da torre da Chaimite uma rajada
saltam vidros e cal da frontaria
e o tempo vai correndo sem resposta.

E não parava gente de juntar-se.

«Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?»
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
«Se está vivo mostrai-o e vê-lo-emos.»

E a gente não parava de juntar-se.
Quem fechou estas portas? perguntavam.

E já o blindado toma posição.
O Capitão olha o relógio e conta
e antes que diga três irrompem vivas.

Verás florir o Tempo: espada e rosa.

Já saiu a cavalo Álvaro Pais
já o Mestre matou o Conde Andeiro
está caído no Paço trespassado
ó Lisboa prezada venham ver
o Capitão em cima do blindado
Arraial Arraial. E então o Mestre
assomando à varanda a todos diz:
«Amigos sossegai: estou vivo e são.»
E o rouxinol cantou. Olhai as armas
desabrochadas. Cravo a cravo (ouvi
dizer). Andando o Povo levantado.

E não vereis na crónica senão
(sem falsidade) a certidão da História.

Manuel Alegre, Atlântico, 1981

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